sexta-feira, 4 de março de 2011

As tretas do Acordo Ortográfico

Começo por reconhecer a minha ignorância da Ciência Linguística, e dos processos que são seu objecto de estudo. Posto isto, arrogo-me relativa perícia na mui nobre arte de detectar e dissecar tretas e processos de pensamento afins.

A última treta que detectei chegou-me sob a forma de uma encarecida súplica à Igreja Católica. Não é novidade -- a Igreja Católica, antro da caridadezinha, é depositária de um rol infindável de súplicas. Mas este é um caso especial: a autora dirige-se à ICAR com o objectivo de sensibilizar os seus mais altos dirigentes em território português face ao suplício da Língua Portuguesa ás mãos do Acordo Ortográfico de 1990.

Esta carta aberta, escrita num estilo impecável e eloquente, esconde a sua completa ausência de materialidade. O discurso é dominado pela eloquência estéril e logorreica:

um grave caso de delapidação de um património inalienável, aquele único que, depois da nossa mãe, tem um valor sentimental que suplanta o da bandeira, do hino ou dos juramentos sem alma a que muitos actores sociais têm levado a sociedade a assistir.
Podemos verificar neste exemplo um apelo à emoção, uma falácia que pretende sobrepor-se ao argumento lógico através do apelo à víscera. E apesar de ser verdade que possuímos um sistema nervoso visceral , urge recorrer ao cérebro.

A Língua-mãe é uma herança que, passando incólume por todas as modas, assegura a nossa ligação ao passado, transportando-nos, seguros da nossa identidade, onde quer que passemos no mundo.
Aqui a autora parece partir do pressuposto absurdo que as línguas aparecem e desaparecem mediante processos que se inserem num quadro catastrofista. Parece-me a mim que as línguas evoluem ao longo do tempo, de diversas variantes. E é por isso que nenhum de nós fala indo-europeu, nem latim, nem mozárabe nem galaico-português.

As línguas não são heranças que passam incólumes por coisa alguma: são entidades dinâmicas, cuja estrutura se altera de geração para geração. Abate-se assim o pressuposto do essencialismo e catastrofismo linguístico.

muitos há que consideram um crime de lesa-pátria e um total desrespeito por milhões de antepassados, cidadãos deste século XXI e vindouros, alguém ter-se arrogado a alterar, por decreto – e, obviamente, por vergonhosas razões economicistas ou mercantilistas – uma Língua que, como outras, não precisa de leis para evoluir porque, sobretudo, não é de evolução que se trata, mas de um facilitismo
Existe um provérbio chinês que reza assim: "Três homens constituem um Tigre". Ou seja, não é por apelarmos à opinião de muitos (que nem sabemos quem são) que algo se torna verdade. Mais uma falácia. E mesmo que seja verdade que uma língua não evolui por decreto, e que a intervenção do Estado na sua regulação é disputável, falta um argumento de índole linguística.

Não poderia a Igreja Católica intervir na resolução deste assunto, uma vez que é o lugar por excelência dos estudiosos e cultores do português como ele deveria ser sempre? Não tem um contacto privilegiado com um imenso número de portugueses alheios ao seu património maior (por motivos que se prendem com a mentalidade mas agravados pela conjuntura económica que parece sobrepor-se a tudo)? Não deveria a Igreja ter uma palavra a dizer quanto a isto? Até hoje, qual tem sido a posição da Instituição que Vossa Eminência Reverendíssima representa?…
Pelo credo Niceno-Constantinopolitano! Lá porque Deus é imutável, não significa que a língua também o seja! A Igreja é o lugar por excelência da verborreia teológica e do escolasticismo e tomismo deturpadores do pensamento aristotélico, não do culto da Língua. Esse papel passou, em boa hora, para a Universidade.

Alguém me explica porque raio é que a senhora está a escrever para a Igreja Católica ao invés de escrever para as Faculdades de Letras, que contrariamente à Igreja (um corpo calcificado, decrépito, necrólatra) exercem um papel activo junto da comunidade, e que contribuem para a análise e evolução da língua?

Que treta.

7 comentários:

  1. Pois bem. Deixe então de ocupar-se com a treta e assine a I.L.C. que é acto muito mais libertário.
    Cumpts.

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  2. Treta, treta mesmo, é a sua pretensa desmontagem de um texto no qual eu (apesar de ateu) e muitos dos opositores ao Hacordo Hortográfico nos revemos.
    As Faculdades de Letras há muito que se dobraram à vontade do sr. Malaca Casteleiro e quem levantar a voz contra corre o risco de ir para a rua.

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  3. Caro Bic,

    Assinarei, com prazer, quando me conseguirem convencer com argumentos válidos.

    Caro Paulo,

    Eu elaborei um post no qual expliquei o porquê de toda a carta aberta ser uma treta. Deverei generalizar e pressupor que toda a gente que apoia (conscientemente) esta ILC não possui qualquer argumento para além dos imobilismos linguísticos e dos patriotismos pútridos?

    Acho que devo esperar mais um pouco antes de generalizar. Mas não me parece que vá ter que esperar muito.

    Quer, portanto, afirmar que todas as Faculdades de Letras se encontram sob o jugo de um único professor catedrático? Então o que é feito da FLUP? Da FCSH-UNL? E certamente tantas outras?

    Ao menos o Dr. Malaca Casteleiro arregimentou argumentos a favor da unificação linguística dos países de língua portuguesa. O ónus está agora com os senhores.

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  4. Caro Flávio Santos,

    É admirável a sua falta de patriotismo...

    A nossa Língua Portuguesa, é o nosso património cultural imaterial, mais sagrado. É akilo k nos nos caracteriza e distingue das outras línguas ou culturas.

    A k propósito deveríamos fazer um acordo ortográfico com os brasileiros, ou outra cultura luso-descendente?

    Quer mais um bom argumento? A k propósito sua excelência, o Sr. Presidente da República, assina um acordo ortográfico, sem sequer se dar ao trabalho de fazer um referendo, para saber qual a opinião dos portugueses? Por acaso a língua é de sua excelência? A Língua Portuguesa é de todos nós, não é dele!!! Parece-me a mim k houve aki um forte abuso de autoridade, não?

    E para terminar... Já pensou pk terá a autora dakela carta aberta, ter escrito às eminências de cada distrito de Portugal? Se calhar pk tinha esperança k, num país como o nosso, ainda tão crente numa entidade superior, a "igreja" conseguisse iluminar as cabeças dos crentes, sobre a estupidez de tal acordo, bem como, as cabeças de quem tem verdadeiramente, poder para anular definitivamente este acordo, ou não será?

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  5. Caros Amigos,

    aquilo que afinal poderemos chamar tretas do AO são a areia que nos andam a deitar nos olhos, tentando convencer-nos que existe uma necessidade de se criar uma unificação ortográfica. Essa falsa unificação não se concretizará com o AO: 1. a ortografia não ficará unificada, 2. a confusão aumentará, 3. o português ficará mais pobre no futuro, 4. as despesas editoriais aumentarão, 5. os tradutores portugueses perderão trabalho… com estes poucos exemplos aos quais se poderiam juntar muitos mais, quem sairá derrotado — desta decisão irreflectida, motivada apenas pela vontade do ego de quem, em nome duma nação, se arvora dono da sua língua, com capacidade pessoal para tomar decisões em nome de todos — são os portugueses e a sua tradicional forma de falar e de escrever e os seus empregos, aqueles que mais terão a perder.

    Temos ainda que ter em conta como durante anos o assunto se manteve aparentemente esquecido – em “águas-de-bacalhau” — e de repente é apresentado como um facto consumado sem retorno possível.
    Não estarão os portugueses a ser ludibriados como se fossem um bando de idiotas ignorantes sem vontade própria nem capacidade de decisão?

    Sabemos que as línguas actuais estão vivas, não são passivas, e evoluem naturalmente, sem necessidade de machadadas radicais que as mutilam desnecessariamente. Sabemos também que as consoantes “mudas” em Portugal têm uma função específica: abrir a sonoridade da vogal anterior. Sem as consoantes mudas certos vocábulos tenderão para a anulação dalgumas vogais como “direcção” que passará fatalmente à pronúncia de “dir’ção” com o passar do tempo. De nada adianta invocarmos a raiz etimológica para justificar as consoantes agora condenadas, pois ao longo do tempo outras mudas ficaram pelo caminho como alguns C (districto); F (difficuldade); H (eschola); L (elle); N (anno); PH (pharmacia); TH (methodo), T (litterario), por exemplo. E ainda não percebi porque não foram radicais ao ponto de propor a extinção dos H iniciais e QU como “horto” passar a “orto” e “quilo” tornar-se “kilo”! O que verdadeiramente importa é que todas essas anteriores alterações não obrigam a que agora se volte a delapidar a língua sem justificação lógica. O que agora importa é defender a contenção de custos e de empregos que toda a mudança, desnecessária, implica!

    A quem beneficiam estas alterações? Ao povo português? Porque motivo? Passará a ser mais fácil escrever? Passará a língua portuguesa a ficar unificada? Como? Por quem? Onde? Com que intenção? Haverá alguém que consiga ter a gentileza de me explicar as vantagens de tamanho disparate? Eu ficar-lhe-ia grato…

    Galizes

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  6. Obs.:
    1. a ortografia não ficará unificada, pois, passaremos a ter duplas grafias em muitos vocábulos anteriores: facto(pt)/fato(br); homónimo(pt)/homónimo(br); passámos(pt)/passamos(br); eletrão(pt)/elétron(br); e em vocábulos futuros, aqueles que tinham a mesma grafia e passarão a dupla como nos casos: aspeto(pt)/aspecto(br); caraterística(pt)/característica(br); receção(pt)/recepção(br); infeção(pt)/infecção(br); espetador(pt)/espectador(br); espetativa(pt)/espectativa(br); fação(pt)/facção(br); etc…

    2. a confusão aumentará, pois no mesmo texto poderão passar a coexistir ambas as formas actuais da língua portuguesa, com grafias diferentes para as palavras, colocações diferentes dos pronomes, uso de formas gramaticais distintas, uso de formas verbais não usadas anteriormente, como “priorizar”, “viralizar” ou ficar “antenado”, etc.

    3. o português ficará mais pobre, ao invés de ficar mais rico, pois tenderá a perder a actual riqueza das diversificadas formas verbais, passando a formas mais simplificadas (e menos exactas) como as usadas no Brasil; e com o passar do tempo dar-se-á uma sobreposição da variante mais falada sobre aquela que tem menos usuários, acabando a forma brasiliana por influenciar, obscurecer e exterminar a variante lusitana devido ao peso da quantidade de falantes…

    4. as despesas editoriais aumentarão desnecessariamente com a revisão e reedição segundo as novas norma, bem como a necessidade de novos dicionários, desactualizando os anteriores e obrigando os usuários da língua a mais despesas na aquisição de outros novos. Necessidade de novos revisores ortográficos informáticos, etc.

    5. os tradutores portugueses perderão trabalho e empregos, pois uma versão traduzida para brasiliano será oficialmente considerada como válida em qualquer país sob a pretensa designação de estar redigida em português unificado, mas esse português não é obrigatoriamente o falado e escrito em Portugal…

    Galizes

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  7. Começou o seu texto por admitir que os seus conhecimentos de Linguística serão poucos ou nenhuns. Afirmou depois que não haverá ainda encontrado argumentos válidos que o convençam do desvalor ou demérito do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990). Desconheço quais serão os argumentos que haverá encontrado ao longo do seu percurso.
    Uma vez que também eu não sou linguista e isto é matéria da competência deles, recorrerei à voz dos linguistas. Não tecerei comentários quanto à sua competência, porquanto isso é desnecessário e, vindo de mim, nada significaria.
    Poderá encontrar todos os pareceres emitidos sobre o Acordo Ortográfico seguindo este apontador: http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/AOLP90/CD-PR/index.html.
    Se teve tempo e paciência para analisar tão demoradamente a carta aberta que escolheu dissecar, terá certamente tempo para analisar pareceres técnicos rigorosos e comentários científicos profundamente razoados. Se escolher não os ler e ficar-se pela análise de cartas escritas por não-linguistas, essa será a sua opção — a opção de não procurar as fontes devidas para encontrar os argumentos de quem dissecou o Acordo de forma sistemática e à luz da ciência linguística.
    Em vez de desperdiçar as sua «perícia na mui nobre arte de detectar e dissecar tretas e processos de pensamento afins» em textos de pessoas bem intencionadas, porventura ingénuas, vá brincar com os meninos grandes.

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