A última treta que detectei chegou-me sob a forma de uma encarecida súplica à Igreja Católica. Não é novidade -- a Igreja Católica, antro da caridadezinha, é depositária de um rol infindável de súplicas. Mas este é um caso especial: a autora dirige-se à ICAR com o objectivo de sensibilizar os seus mais altos dirigentes em território português face ao suplício da Língua Portuguesa ás mãos do Acordo Ortográfico de 1990.
Esta carta aberta, escrita num estilo impecável e eloquente, esconde a sua completa ausência de materialidade. O discurso é dominado pela eloquência estéril e logorreica:
um grave caso de delapidação de um património inalienável, aquele único que, depois da nossa mãe, tem um valor sentimental que suplanta o da bandeira, do hino ou dos juramentos sem alma a que muitos actores sociais têm levado a sociedade a assistir.Podemos verificar neste exemplo um apelo à emoção, uma falácia que pretende sobrepor-se ao argumento lógico através do apelo à víscera. E apesar de ser verdade que possuímos um sistema nervoso visceral , urge recorrer ao cérebro.
Aqui a autora parece partir do pressuposto absurdo que as línguas aparecem e desaparecem mediante processos que se inserem num quadro catastrofista. Parece-me a mim que as línguas evoluem ao longo do tempo, de diversas variantes. E é por isso que nenhum de nós fala indo-europeu, nem latim, nem mozárabe nem galaico-português.
A Língua-mãe é uma herança que, passando incólume por todas as modas, assegura a nossa ligação ao passado, transportando-nos, seguros da nossa identidade, onde quer que passemos no mundo.
As línguas não são heranças que passam incólumes por coisa alguma: são entidades dinâmicas, cuja estrutura se altera de geração para geração. Abate-se assim o pressuposto do essencialismo e catastrofismo linguístico.
muitos há que consideram um crime de lesa-pátria e um total desrespeito por milhões de antepassados, cidadãos deste século XXI e vindouros, alguém ter-se arrogado a alterar, por decreto – e, obviamente, por vergonhosas razões economicistas ou mercantilistas – uma Língua que, como outras, não precisa de leis para evoluir porque, sobretudo, não é de evolução que se trata, mas de um facilitismoExiste um provérbio chinês que reza assim: "Três homens constituem um Tigre". Ou seja, não é por apelarmos à opinião de muitos (que nem sabemos quem são) que algo se torna verdade. Mais uma falácia. E mesmo que seja verdade que uma língua não evolui por decreto, e que a intervenção do Estado na sua regulação é disputável, falta um argumento de índole linguística.
Não poderia a Igreja Católica intervir na resolução deste assunto, uma vez que é o lugar por excelência dos estudiosos e cultores do português como ele deveria ser sempre? Não tem um contacto privilegiado com um imenso número de portugueses alheios ao seu património maior (por motivos que se prendem com a mentalidade mas agravados pela conjuntura económica que parece sobrepor-se a tudo)? Não deveria a Igreja ter uma palavra a dizer quanto a isto? Até hoje, qual tem sido a posição da Instituição que Vossa Eminência Reverendíssima representa?…Pelo credo Niceno-Constantinopolitano! Lá porque Deus é imutável, não significa que a língua também o seja! A Igreja é o lugar por excelência da verborreia teológica e do escolasticismo e tomismo deturpadores do pensamento aristotélico, não do culto da Língua. Esse papel passou, em boa hora, para a Universidade.
Alguém me explica porque raio é que a senhora está a escrever para a Igreja Católica ao invés de escrever para as Faculdades de Letras, que contrariamente à Igreja (um corpo calcificado, decrépito, necrólatra) exercem um papel activo junto da comunidade, e que contribuem para a análise e evolução da língua?
Que treta.